terça-feira, 24 de maio de 2016

Distinções entre Revelia e Confissão Ficta

 A revelia significa falta de defesa em razão a ausência da Reclamada na audiência em que deveria apresentar sua defesa.

A confissão ficta significa falta de depoimento pessoal, interrogatório das partes. O momento da revelia é o da contestação; o momento da confissão ficta é o do depoimento pessoal.

A lei trabalhista distingue as duas figuras:

A confissão ficta é conseqüência da revelia, muito embora possa haver confissão ficta, sem revelia.

O revel é também considerado confesso quanto à matéria de fato.

Nos casos de adiamento da audiência após a contestação não comparecendo a Reclamada para depor na audiência subseqüente, ocorre confissão ficta, mas não existe revelia, porque a contestação foi apresentada na primeira audiência.

Fundamento: arts. 247, 844, 847 e 848 da CLT.


Direito Processual do Trabalho
Da Revelia e Confissão


Referência Legislativa Básica: CLT - artigo 844; Súmula 122 do TST


Acerca da revelia e da confissão, veja o que diz o artigo 844 da CLT:

"Art. 844 - O não-comparecimento do reclamante à audiência importa o arquivamento da reclamação, e o não-comparecimento do reclamado importa revelia, além de confissão quanto à matéria de fato. (Grifos nossos)

Sobre o tema leciona o eminente magistrado, Dr. Jorge Luiz Souto Maior:

“No direito processual trabalhista a revelia advém do não comparecimento do reclamado à audiência e não propriamente do fato de não ter apresentado defesa ou não ter dado mostras de que pretendia se defender (art. 844, da CLT). Com efeito, revelia, embora seja palavra de origem duvidosa, mais provavelmente tem sua origem ligada á palavra espanhola ‘rebeldia’. Assim, revelia ‘é o desatendimento ao chamamento citatório’, que, no processo do trabalho, se faz pela notificação e tem como determinação principal o comparecimento à audiência, na qual o citado poderá, dentre outras medidas, oferecer defesa”. MAIOR, Jorge Luiz Souto. Direito Processual do Trabalho, São Paulo, LTR, 1998.

Conheça o teor da Súmula 122 do TST:

"122 - Revelia. Atestado médico. (RA 80/1981, DJ 06.10.1981. Redação alterada pela Res 121/2003, DJ 19.11.03. Nova redação em decorrência da incorporação da Orientação Jurisprudencial nº 74 da SDI-1 - Res. 129/2005, DJ. 20.04.2005) A reclamada, ausente à audiência em que deveria apresentar defesa, é revel, ainda que presente seu advogado munido de procuração, podendo ser ilidida a revelia mediante a apresentação de atestado médico, que deverá declarar, expressamente, a impossibilidade de locomoção do empregador ou do seu preposto no dia da audiência. (Primeira parte - ex-OJ nº 74 - Inserida em 25.11.1996; segunda parte - ex-Súmula nº 122, redação dada pela Res 121/2003, DJ 19.11.03).



quarta-feira, 18 de maio de 2016

O Rubem sabe das coisas...

Como quase todo ser humano, ser pensante que sou, penso o tempo todo. Inclusive nas horas indevidas, como na hora de dormir, por exemplo. E hoje refleti sobre pessoas com mentes pequenas com ideias fixas, imutáveis. Já dizia Raul Seixas, eu prefiro ser essa metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo.  Nessa esteira dizia o pensador Heráclito que ninguém toma banho duas vezes no mesmo rio, primeiro porque as águas já não são as mesmas e segundo porque a pessoa já não é a mesma. A cada dia somos uma nova versão de nós mesmos. Aquele que não se modifica envelhece. E este envelhecimento é na alma e não no corpo. Mas não podemos pensar pelos outros, isso é uma tarefa personalíssima. Cada um de nós deve olhar para si e também para fora, porque somos seres coletivos, plurais. É lógico que não devemos nos rebaixar perante os outros, mas aquela ideia de "tô nem aí para o que os outros pensam ou dizem" não é um dogma. Devemos sim ouvir e refletir. Muitas vezes são palavras ao vento outras vezes são indícios que não estamos no caminho certo. Para encerrar esta enxuta reflexão, coleciono uma frase de um dos meus pensadores e escritores favoritos - Rubem Alves.:



"Quem tenta ajudar uma borboleta a sair do casulo a mata.
 Quem tenta ajudar um broto a sair da semente o destrói. 
 Há certas coisas que não podem ser ajudadas.
 Tem que acontecer de dentro para fora."


Um grande abraço,


Roldan Alencar



Se você gostou deste texto, leia também: Felicidade e Caos

terça-feira, 17 de maio de 2016

INTIMIDADE e VOZINHA

Para descontrair:




Novo CPC e a Instrução Normativa nº. 39/2016 do TST: os primeiros reflexos no Direito Processual do Trabalho

O Tribunal Superior do Trabalho publicou a Resolução nº. 203, de 15 de março de 2016, editando a Instrução Normativa nº. 39, que refere as normas do novo CPC aplicáveis e inaplicáveis ao processo do trabalho, de forma não exaustiva. Basicamente, os artigos 2º e 3º do ato, aduzem as normas que devem ser observadas na prática trabalhista. Veja-se:

Art. 2° Sem prejuízo de outros, não se aplicam ao Processo do Trabalho, em razão de inexistência de omissão ou por incompatibilidade, os seguintes preceitos do Código de Processo Civil:

I – art. 63 (modificação da competência territorial e eleição de foro);

II – art. 190 e parágrafo único (negociação processual);

III – art. 219 (contagem de prazos em dias úteis);

IV – art. 334 (audiência de conciliação ou de mediação);

V – art. 335 (prazo para contestação);

VI – art. 362, III (adiamento da audiência em razão de atraso injustificado superior a 30 minutos);

VII – art. 373, §§ 3º e 4º (distribuição diversa do ônus da prova por convenção das partes);

VIII – arts. 921, §§ 4º e 5º, e 924, V (prescrição intercorrente);

IX – art. 942 e parágrafos (prosseguimento de julgamento não unânime de apelação);

X – art. 944 (notas taquigráficas para substituir acórdão);

XI – art. 1010, § 3º(desnecessidade de o juízo a quo exercer controle de admissibilidade na apelação);

XII – arts. 1043 e 1044 (embargos de divergência);

XIII – art. 1070 (prazo para interposição de agravo).

Art. 3° Sem prejuízo de outros, aplicam-se ao Processo do Trabalho, em face de omissão e compatibilidade, os preceitos do Código de Processo Civil que regulam os seguintes temas:

I – art. 76, §§ 1º e 2º (saneamento de incapacidade processual ou de irregularidade de representação);

II – art. 138 e parágrafos (amicus curiae);

III – art. 139, exceto a parte final do inciso V (poderes, deveres e responsabilidades do juiz);

IV – art. 292, V (valor pretendido na ação indenizatória, inclusive a fundada em dano moral);

V – art. 292, § 3º (correção de ofício do valor da causa);

VI – arts. 294 a 311 (tutela provisória);

VII – art. 373, §§ 1º e 2º (distribuição dinâmica do ônus da prova);

VIII – art. 485, § 7º (juízo de retratação no recurso ordinário);

IX – art. 489 (fundamentação da sentença);

X – art. 496 e parágrafos (remessa necessária);

XI – arts. 497 a 501 (tutela específica);

XII – arts. 536 a 538 (cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de fazer, de não fazer ou de entregar coisa);

XIII – arts. 789 a 796 (responsabilidade patrimonial);

XIV – art. 805 e parágrafo único (obrigação de o executado indicar outros meios mais eficazes e menos onerosos para promover a execução);

XV – art. 833, incisos e parágrafos (bens impenhoráveis);

XVI – art. 835, incisos e §§ 1º e 2º (ordem preferencial de penhora);

XVII – art. 836, §§ 1º e 2º (procedimento quando não encontrados bens penhoráveis);

XVIII – art. 841, §§ 1º e 2º (intimação da penhora);

XIX – art. 854 e parágrafos (BacenJUD);

XX – art. 895 (pagamento parcelado do lanço);

XXI – art. 916 e parágrafos (parcelamento do crédito exequendo);

XXII – art. 918 e parágrafo único (rejeição liminar dos embargos à execução);

XXIII – arts. 926 a 928 (jurisprudência dos tribunais);

XXIV – art. 940 (vista regimental);

XXV – art. 947 e parágrafos (incidente de assunção de competência);

XXVI – arts. 966 a 975 (ação rescisória);

XXVII – arts. 988 a 993 (reclamação);

XXVIII – arts. 1013 a 1014 (efeito devolutivo do recurso ordinário – força maior);

XXIX – art. 1021 (salvo quanto ao prazo do agravo interno).

Importante verificar que um dos pontos em que mais havia dúvidas, qual seja, a forma da contagem dos prazos em dias úteis (artigo 219, do novo CPC), foi respondida pela Instrução Normativa, como um dos dispositivos não aplicáveis ao processo do trabalho. Neste sentido, continua com plena aplicação o artigo 775, da CLT, segundo o qual os prazos estabelecidos contam-se com exclusão do dia do começo e inclusão do dia do vencimento, e são contínuos e irreleváveis, podendo, entretanto, ser prorrogados pelo tempo estritamente necessário pelo juiz ou tribunal, ou em virtude de força maior, devidamente comprovada.

Na mesma semana em que se inicia a vigência do novo CPC, o Tribunal Superior do Trabalho com rapidez concede algumas respostas preliminares, sem prejuízo de outras tantas dúvidas que ainda surgirão a partir de agora. Para quem tiver interesse, no link http://www.tst.jus.br/documents/10157/429ac88e-9b78-41e5-ae28-2a5f8a27f1fe, encontra-se o inteiro teor da Resolução aprovada pelo TST.

Por Guilherme Wunsch 

sexta-feira, 13 de maio de 2016

Felicidade e Caos

Felicidade é ter alguém para amar,
                        algo para fazer
                                 e alguma coisa pela qual esperar...


Sou fã confesso de aforismos:

Aforismo é qualquer forma de expressão sucinta de um pensamento moral. Do grego “aphorismus”, que significa “definição breve”, “sentença”. Alguns sinônimos de aforismos são: ditado, máxima, adágio, axioma, provérbio e sentença. (wikipedia)

Eles possuem um poder de síntese tão grande que parecem esclarecer dilemas da vida. Alguns são tão antigos mas significam tanto ainda hoje. Talvez porque o homem mesmo com toda tecnologia e conhecimento acumulado ainda guarda muito da sua essência de tempos passados. Não é à toa que ainda estudamos grandes pensadores do passado como Aristóteles e Platão.

Voltando a frase que iniciou o texto; é tão autoexplicativo* que tecer comentários é tarefa difícil e talvez desnecessária. Mas nós, seres humanos que somos, precisamos da repetição e do alerta. Caso contrário, todos nós seríamos felizes, magros e bem sucedidos, afinal, todo mundo sabe que se comer menos e praticar atividade física será magro, ou, se trabalhar, se empenhar e estudar será potencialmente bem-sucedido. E, que será feliz se estiver em paz consigo próprio, se tiver bons amigos, uma ocupação que goste etc e tal. E por que tanto de nós não somos o que queremos ou que esperam que sejamos? Resposta difícil. Mas essa frase como tantas outras é uma espécie de manual de algo que constatamos. Talvez não consigamos realizar, mas sabemos que se fizermos o resultado virá.

Então que nós possamos ter alguém para amar, porque ninguém vive sozinho - podemos estar sozinhos agora, mas em algum momento já estivemos acompanhados. Que possamos ter algo para fazer, porque uma vida sem propósitos é vazia, precisamos de algo maior do que nós (por isso amo a arte) e precisamos de algo pelo qual esperar, porque a vida é feita de sonhos. Uma pessoa que não espera nada não tem felicidade em viver. Se pensarmos que a vida já deu tudo que tinha que dar então já não há motivos para viver.

Que a nossa vida seja cheia de amores, de afazeres e de sonhos.

Amém!!!

Roldan Alencar

"No princípio era o caos; foi do caos que nasceu a beleza"


obs.: Se você gostou desse texto, leia também: Você é feliz?

* Nova ortografia: em "autoexplicativo", o prefixo "auto" termina com vogal, e o segundo termo, "explicativo", começa por vogal diferente. Dessa forma, o termo "autoexplicativo" é escrito assim, sem hífen.




quinta-feira, 12 de maio de 2016

Ando devagar...

Vez ou outra alguém me pergunta  - Roldan qual sua música favorita? É tão difícil eleger uma música em meio a tantas outras. Sou apaixonado por música. Por arte. Seria muito injusto escolher uma em detrimento as outras. Então prefiro dizer que uma das minhas músicas favoritas é Tocando em Frente. Uma poesia musicada. A letra é tão simples e ao mesmo tempo tão verdadeira, a melodia tão suave. Uma música que não me canso de escutar. Abaixo um desenho que fiz e um vídeo do gênio Almir Sater interpretando sua música feita em parceria com Renato Teixeira.


terça-feira, 10 de maio de 2016

"... o vento fresco da tarde..."

Um bem-te-vi me visita todas as manhãs. Assenta-se no peitoril da janela e se põe a dar bicadas no vidro. Por que ele bica o vidro? Porque ele vê um bem-te-vi assentado no peitoril da janela, bem à sua frente. Inimigo. Como se atreve a invadir o seu espaço? Não conhece ele as regras dos pássaros, que cada pássaro tem um espaço que é só seu e que não pode ser invadido por estranhos? Umas valentes bicadas vão ensinar-lhe quem é que manda ali. E lá vão as bicadas... Mas o danado do invasor é muito rápido. Parece adivinhar o que ele vai fazer. Ele também bica, no exato momento, no exato lugar da sua bicada. Os dois bicos se chocam e o outro não se abala. Depois de várias tentativas frustradas ele se sente derrotado e vai embora. No dia seguinte, esquecido do que aconteceu, ele volta e repete tudo o que havia feito na véspera. O bem-te-vi não aprende. Ele não desconfia... Bem-te-vis não sabem o que são espelhos.

Nem todos sabem o que são espelhos. Jorge Luis Borges conta de um selvagem que caiu morto de susto ao ver pela primeira vez sua imagem refletida no espelho. Ele pensou que seu rosto havia sido roubado por aquele objeto mágico. É verdade que, vez por outra, também nos assustamos ao ver nossa própria imagem refletida num espelho - mas por outras razões. Nem sempre é prazeroso ver o nosso próprio rosto.

O místico Ângelus Silésius disse, num poema, que nós temos dois olhos. Com um olho nós vemos as coisas do mundo de fora, efêmeras. Com o outro nos vemos as coisas do mundo de dentro, eternas.

Efêmeras são as nuvens, efêmeras são as florações dos ipês, efêmero é o nosso próprio rosto. Heráclito, filósofo grego, para falar do efêmero das coisas, disse que elas são rio, que elas são fogo. O rio é sempre outro. O fogo é sempre outro. A cada momento que passa as coisas que eram não são mais. Todas as coisas do mundo de fora, efêmeras, se refletem em espelhos. Olhamos para a superfície do lago, espelho. Nele aparecem refletidas as nuvens, os ipês, o nosso rosto. E sabemos que são reflexos. Ao vê-las não nos comportamos como o bem-te-vi.

Mas dentro de nós existe um outro mundo que está fora do tempo. Na memória ficam guardadas as coisas que amamos e perdemos. Não existem mais, no mundo de fora. Mas são reais, no mundo de dentro. Como disse a Adélia Prado, "aquilo que a memória ama fica eterno". Na alma as coisas ficam eternas porque ela, a memória, é o lugar do amor. E o amor não suporta que as coisas amadas sejam engolidas pelo tempo.

As coisas que existem no mundo de dentro aparecem refletidas no espelho da fantasia. A fantasia é o espelho da alma. Muitas pessoas, contemplando as imagens que aparecem refletidas no espelho da fantasia, as tomam como realidade. Comportam-se como o bem-te-vi. Quem se comporta como o bem-te-vi, confundindo imagens com a realidade, é louco.

Muitas são as expressões do espelho da fantasia. Os sonhos, por exemplo. Ninguém confunde os sonhos com a realidade de fora. Os sonhos são imagens do mundo de dentro. Reflexos da alma. Também a arte. Um quadro de Van Gogh não é um reflexo do mundo de fora. Pintores não pintam o mundo de fora. Por que pintá-lo, se ele já existe? Um quadro de Van Gogh é o mundo, tal como ele aparece refletido na alma do pintor. Em qualquer quadro está refletido o rosto da alma. O mesmo é verdadeiro das imagens da religião. As imagens da religião não são imagens de um mundo que existe do lado de fora. São imagens do mundo que existe do lado de dentro. Retratos da alma. Conte-me sobre a sua religião e eu lhe direi como é a sua alma. Muitas pessoas, possuídas pela loucura do bem-te-vi, tomam as imagens da religião como reflexos de coisas que existem no mundo de fora. E, assombrados ou embriagados por elas, fazem as coisas mais incríveis.

Dentre as mais belas imagens jamais produzidas pela religião estão os poemas da Criação. Os bem-te-vis lêem os poemas da criação e pensam que eles são descrições de eventos que aconteceram do lado de fora, efêmeros, no tempo. E aí se põe a brigar com a ciência. A ciência, essa sim, são os reflexos do mundo de fora. E acontece que os reflexos da ciência são diferentes dos reflexos da religião: um Big-Bang, milhões de galáxias, a progressiva evolução da vida, o homem emergindo dos animais ditos inferiores, através de um longo processo, no tempo. Os bem-te-vis brigam com a ciência, sem se dar conta de que os poemas sagradas nada sabem sobre o mundo de fora. Eles só sabem sobre o mundo de dentro. Esses poemas não são ciência. Não pretendem dizer aquilo que aconteceu lá fora, no mundo do tempo. São poesia. Descrevem o eterno caminho da alma em busca da felicidade, em busca do Paraíso. A alma é bela porque nela mora, eternamente um Paraíso perdido... Deus é o nosso reflexo, no espelho... Está dito no próprio poema que Deus nos criou como imagem de si mesmo. Deus se vê ao nos contemplar. E nós nos vemos, ao contempla-lo. Deus é a nossa imagem refletida no espelho da fantasia. Como disse Ângelus Silésius, "o olho com que Deus nos vê é o mesmo olho com que o vemos..."

O que teria levado Deus a criar? Quando estamos felizes não pensamos em criar. Não é preciso. O gozo da felicidade nos basta. O impulso criativo nos vem quando sentimos que algo está faltado, que a vida poderia ser melhor. Criamos para curar nossa infelicidade. O poeta alemão Heine escreveu um poema "A canção do Criador", no qual ele diz que Deus criou porque estava doente. Criou para ficar com saúde. Deus só pode ter criado porque o seu mundo de espíritos, anjos e realidades espirituais não lhe bastava. Ele tinha fome de formas, cores, perfumes, sons, gostos. A Criação é o banquete que Deus preparou para sua fome. Deus tem fome de matéria. Deus tem fome de beleza. A Criação é o poema que descreve a culinária divina. Aquilo que Ele criou, isso é o que lhe dá prazer. Ninguém irá pensar que Deus pode criar algo pior do que o que já existia. Se criou algo novo, é porque esse novo era melhor: o nosso mundo é melhor do que aquilo que havia desde toda eternidade...

"No princípio de todas as coisas a terra era sem forma, vazia, e o Espírito de Deus pairava sobre a face das águas... E disse Deus: 'Haja luz'. E houve luz! E viu Deus que era bom". Assim se inicia o poema: com o que de mais espiritual existe. Haverá coisa mais espiritual que a luz? Era bom, mas não o suficiente. Se fosse suficiente, Deus teria ficado feliz. Mas não ficou. E conta o poema que a criação vai acontecendo, num processo de afunilamento - dos espaços espirituais infinitos para espaços cada vez mais limitados e definidos: o sol, a lua, as estrelas, a terra seca, as águas. Tudo muito bom, mas não o suficiente. Até que chega o momento culminante: Deus cria um pequeno espaço, um jardim - um Paraíso.

Um jardim é uma excitação aos sentidos. De que adiantariam as cores das flores se não houvesse olhos que as percebessem? De que adiantariam os seus perfumes se não houvesse narizes que os sentissem? De que adiantariam os gostos das frutas se não houvesse bocas que se deleitassem com eles? Um jardim é um objeto de felicidade. Terminada a sua criação, diz o texto sagrado: " ... e viu Deus que era muito bom." Nada de melhor poderia existir. Diz ainda o texto sagrado que aquele jardim era "um lugar de deleites." O movimento do espírito é na direção da matéria. Como espírito puro ele está infeliz, incompleto. Como uma canção que nunca é cantada. Quando o espírito dá forma à matéria, aí temos a beleza. E, com a beleza, a alegria. Deus nos criou para a alegria. E a felicidade de Deus foi tanta que ele abandonou os espaços infinitos e eternos e passou a "passear pelo jardim no vento fresco da tarde." Ah! Então Deus tem prazer no vento fresco da tarde... Se Deus tem prazer no vento fresco da tarde o vento fresco da tarde é divino. Ser espiritual é gozar o vento fresco da tarde, gozar o perfume dos jasmins, sentir o gosto das frutas, deleitar-se na forma e nas cores das flores, amar as montanhas distantes, entregar-se ao frio da água das cachoeiras, sentir o arrepio nas carícias da pele. Deus amou tanto esse mundo de prazeres que ele mesmo criou - melhor não poderia ter sido criado - que resolveu tornar-se homem. Ser homem, de carne e osso, com olhos, ouvidos, nariz, boca, pele é melhor que ser espírito puro. Você quer ser espiritual? Abra os olhos e ande pelo jardim. No universo inteiro não existe nada mais divino...

Michelangelo por acaso pensaria que o mármore é coisa inferior? Mas como? Sem o mármore a Pietà nunca seria vista e amada! E ele ficaria feliz se não tivesse mãos, porque assim a Pietà permaneceria para sempre espírito puro! Deus por acaso acharia que o corpo é coisa inferior? Mas como? Sem o corpo o Verbo nunca viveria como carne e ele, Deus, amaria a morte. Porque com a morte o homem permaneceria para sempre espírito puro...

Espiritual é o jardineiro que planta o jardim, o pintor que pinta o quadro, o cozinheiro que faz a comida, o arquiteto que faz a casa, o casal que gera um filho, o poeta que escreve o poema, o marceneiro que faz a cadeira. A criatividade deseja tornar-se sensível. E quando isso acontece, eis a beleza!

Leia outras crônicas no site pessoal de Rubem Alves (rubemalves.com.br)






sexta-feira, 6 de maio de 2016

Dani Black - Areia


Mil Razões para você ouvir...

Essa parceria autoral é muito profícua. Dani Black e Tiago Iorc certamente representam a nata dos novos compositores no Brasil. Músicas com arranjos incríveis, com letras elaboradas e melodias suaves. Assim a música Mil Razões vale a pena ser ouvida em looping.


"Posso ser leve como uma brisa ou forte como uma ventania,
Depende de quando e como você me vê passar."

Clarice Lispector