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segunda-feira, 25 de julho de 2016

Relatório mostra que conflito de terras indígenas no MS remonta aos anos 1950

O Relatório Figueiredo, produzido em 1967 e redescoberto recentemente, já descrevia detalhadamente os conflitos agrários em terras indígenas que atualmente são base da violência no campo registrada no Mato Grosso do Sul. 

O documento aponta que nas duas comissões parlamentares de inquérito, que funcionaram em 1955 e em 1963, terras indígenas eram arrendadas ou vendidas, com aval do Estado, responsável por emitir os títulos. 

A primeira CPMI, em 1955, funcionou com o objetivo de anular a doação de terras feitas pelo governo do antigo Mato Grosso. A segunda, em 1962, tinha o objetivo de apurar irregularidades no extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Esse foi o contexto que motivou a expedição realizada pelo procurador Jader Figueiredo, que produziu o relato de 7 mil páginas que inclui o roubo de terras indígenas, tortura e extermínio de tribos inteiras no Brasil durante o período da ditadura militar:

“O que estamos vendo acontecer agora no Mato Grosso do Sul é reflexo do que foi feito pelo Estado sobre terras indígenas”

comentou o pesquisador Marcelo Zelic, coordenador do projeto Armazém Memória, vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais. Foi Marcelo Zelic quem encontrou o Relatório Figueiredo no Museu do Índio, no Rio de Janeiro

O documento, que se julgava ter sido destruído em um incêndio no Ministério da Agricultura, em junho de 1967, relata métodos cruéis de tortura praticados contra índios com o apoio do extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão criado em 1910, quando várias frentes de expansão para o interior do País promoviam um verdadeiro massacre da população nativa que resistia ao chamado “avanço da civilização”. 

A informação de que o documento não havia sido destruído foi revelada em abril, pelo jornal O Estado de Minas. Loteamento Para Zelic, o relatório contém um conjunto probatório sobre a espoliação de terras no Mato Grosso do Sul. Além dos depoimentos das CPIs, o relatório detalha também como famílias que se tornaram tradicionais no campo se apossaram de terras indígenas. 

No caso da Colônia Tereza Cristina, por exemplo, o Relatório Figueiredo contém um mapa da área desenhado pelo marechal Cândido Mariano da Silva Rondon no qual consta o nome das famílias que teriam ficado com cada pedaço de terra. 

Outro documento importante constante no relatório é o pedido feito pelo Estado do Mato Grosso em 1966 (portanto bem antes da divisão entre Mato Grosso e Mato Grosso do Sul), para explorar a área “para efeito de colonização estadual e aproveitamento de manancial energético”. 

Há também no relatório, inquéritos militares para a apuração de venda ilegal de terras indígenas nos quais agentes públicos eram os acusados. Outras provas da apropriação de terras indígenas também estão nas cópias do Diário da Justiça, anexado ao relatório, que aponta nome de pessoas que se apropriaram de terras indígenas no Estado. 

O SPI era ligado ao Ministério do Interior e funcionou até 1967, quando foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). O documento leva o nome de seu autor, o procurador Jader de Figueiredo Correia, que morreu em um acidente de ônibus em 1976, aos 53 anos e aponta que o órgão que seria responsável por proteger os índios das violações deu aval para a violência cometida pelas chamadas “frentes civilizatórias”. 

Temor de retrocesso O pesquisador Marcelo Zelic teme que atitudes do governo como a de começar a ouvir as pastas da Agricultura e Desenvolvimento Agrário e Combate à Fome nos processos de demarcações de terras indígenas representem uma mudança de rumo na política indigenista no Brasil. 

Em depoimento na audiência pública realizada no Senado sobre o relatório, Zelic considerou a mudança um retrocesso:

“Retornar a questão da demarcação das terras indígenas e as políticas públicas voltadas aos índios à esfera de influência do Ministério da Agricultura é um enorme retrocesso civilizatório. E é um retrocesso porque, de fato, as barbaridades que se relatam ali, no Relatório Figueiredo, foram monstruosas”

   Destacou:

 “O Ministério da Agricultura, como já mostrou a experiência histórica, possui interesses conflitantes, como uma política pública de respeito à cultura, a recuperação de áreas subtraídas, a demarcação e preservação dessas áreas de existência das populações indígenas do Brasil” Justificou.

Crise Na semana passada, a ministra Gleisi Hoffmann, voltou a defender que outros órgãos do governo além da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) participem do processo de demarcação de terras indígenas.

 Atualmente, o decreto que trata do tema diz que a FUNAI pode solicitar a ajuda de outros órgãos públicos, mas o governo quer tornar obrigatório ouvir também as pastas que tratam do tema agrário e deve regulamentar essa mudanças até o fim desse semestre. 

Também na semana passada, em meio à maior crise indígena do governo Dilma Rousseff, a presidente da FUNAI, Marta Azevedo, deixou o cargo alegando problemas de saúde. Marta pediu para sair após conflitos entre índios terena e fazendeiros no Mato Grosso do Sul, mas também após uma série de posições tomadas pelo Planalto que explicitaram o tom da política indigenista que o governo quer adotar. 

O governo também passou a levar em consideração um relatório produzido pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) que indica que terras no Paraná, que a Funai pretende ver demarcadas não são ocupadas por índios. A questão diz respeito diretamente à ministra Gleisi Hoffmann que é do Estado e que pretende se candidatar no próximo ano ao governo do Paraná.

 “Quando a Ministra Gleisi Hoffmann propõe a influência da Embrapa para discutir o papel da FUNAI, nós estamos voltando a esse passado. Nós não precisamos, pelas histórias que são levantadas, de uma posição que junte os antagônicos para decidir sobre os indígenas”, declarou Zelic. 

Na quinta-feira, índios mundurukus se uniram para protestar no Palácio do Planalto contra diversos projetos do governo para a construção de usinas hidrelétricas na Bacia do Rio Tapajós, no Pará e no Mato Grosso. Os índios queriam ser recebidos por Dilma e recusaram uma carta enviadas a eles pela Secretaria-Geral da Presidência da República, designada para resolver o problema. Nesta semana, eles ocupam a sede da FUNAI.


Fonte: http://www.jovensindigenas.org.br/publicacoes/relatorio-mostra-que-conflito-de-terras-indigenas-no-ms-remonta-aos-anos-1950

sábado, 23 de julho de 2016

Para compreender os conflitos entre fazendeiros e indígenas em MS (Parte I)

Por Jorge Eremites e Paulo Esselin (*)

Há muito os problemas que atingem os povos indígenas em Mato Grosso do Sul ganharam manchete na imprensa regional, nacional e internacional. Todos os anos índios são mortos e nada é feito de objetivo para mudar a realidade. Autoridades eleitas pelo povo, como vereadores, deputados estaduais, deputados federais, senadores, prefeitos e governador, mandato após mandato e salvo honrosas exceções, simplificam o problema. Ao fazerem isso, rechaçam o enfrentamento da questão fundiária, causa maior dos conflitos entre fazendeiros e comunidades indígenas.

Além disso, não raramente recorrem ao argumento de culpar instituições alhures pelo etnocídio ou genocídio cultural em andamento no estado: Supremo Tribunal Federal, Governo Federal, Ministério da Justiça, ONGs, Presidência da República, Conselho Indigenista Missionário, Ministério Público Federal, forças alienígenas que desejariam se apoderar do Aquífero Guarani etc. Repetidas vezes, de maneira costumeira, utilizam de sofismas dos mais variados para distorcer a realidade e formar opinião pública contrária à regularização das terras indígenas no país.

Ao fazerem isso, essas autoridades se isentam de quaisquer responsabilidades, terceirizam o problema e lavam as mãos. Afirmam que é a União, e basicamente ela, que pode e deve solucionar os conflitos pela posse da terra, desde que assim o faça a favor dos fazendeiros, aqueles que possuem títulos de propriedade privada da terra e por vezes financiam campanhas eleitorais e projetos de poder.

A questão fundiária, por sua vez, é um problema muito antigo e suas origens remontam aos séculos 18, 19 e 20, quando se deu a origem da propriedade privada da terra na região. Com o final da chamada Guerra do Paraguai (1864-1870), o antigo sul de Mato Grosso, atual Mato Grosso do Sul, passou a ser mais rapidamente colonizado por migrantes oriundos de outras partes do Brasil, além de imigrantes vindos de além-mar e paízes vizinhos. Desde então o espaço regional se configurou como palco de muitos conflitos pela posse da terra, especialmente quando comunidades indígenas tiveram seus territórios invadidos por fazendeiros e militares desmobilizados do exército imperial. A documentação oficial da época, como os relatórios da Diretória dos Índios da Província de Mato Grosso, comprova a situação. Contudo, sem os povos originários esta parte da bacia platina não estaria incorporada ao território nacional.

Foi graças às alianças com os indígenas, feitas desde o século 18, que Portugal estabeleceu sua hegemonia na porção central da América do Sul. Posteriormente, quando o Brasil tornou-se Estado-nação, as alianças permaneceram durante o período imperial. Exemplo disso foi o protagonismo que os indígenas tiveram na defesa do território nacional durante a Guerra do Paraguai. Autores renomados como o Visconde de Taunay, apenas para citar um exemplo, extenderam-se sobre o assunto e teceram elogios à participação dos Terena, Kinikinao, Kadiwéu, Guató e outros povos que, sozinhos ou ao lado do exército imperial, combateram as tropas invasoras do Paraguai na década de 1860.

Com o fim do conflito bélico platino houve a expansão da fronteira pastoril e, consequentemente, o aumento da titulação dolosa de territórios indígenas a favor de terceiros. A partir de então os povos originários passaram a ter suas terras usurpadas e via de regra não tinham a quem recorrer. Esta é uma das marcas colonialistas da formação do Estado Brasileiro e da propriedade privada da terra em Mato Grosso do Sul.

Neste contexto foi ainda imposto aos Guarani, Kaiowá, Terena e outros indígenas uma forma perversa de exploração da força de trabalho, análoga à escravidão moderna, baseada no conhecido sistema do barracão. Durante a primeira metade do século 20, muitos fazendeiros tinham transformado milhares de indígenas na principal mão-de-obra a ser explorada nas propriedades rurais que eram organizadas no antigo sul de Mato Grosso. Esta situação é verificada na fronteira com o Paraguai e a Bolívia, na Serra de Maracaju e em praticamente todo o estado.

Milhares de indígenas passaram a trabalhar na condição de vaqueiros e em outras atividades econômicas, tais como: lavoura, colheita e preparo da erva-mate, exploração de ipecacuanha, transporte fluvial etc. Muitas mulheres foram ainda “pegas a laço”, violentadas e forçadas a se casar com não-índios, história esta presente na memória de muitos dos antigos (sul) mato-grossenses. Apesar disso tudo, os índios pouco usufruiram das riquezas que produziram e passaram a viver em situações cada vez mais difíceis, sobremaneira quando suas roças foram invadidas pelo gado e os fazendeiros mandaram derrubar as matas existentes em seus territórios. Depois de formadas as propriedades rurais, especiamente entre os anos de 1950 a 1970, a mão-de-obra indígena foi dispensada de muitas fazendas.

Neste contexto histórico, marcado pela expansão do agronegócio no Centro-Oeste, dezenas de comunidades indígenas, as quais ainda conseguiam viver no fundo das fazendas, foram expulsas das terras de ocupação tradicional. Este processo de esbulho foi concluído na década de 1980.

No começo do século 20, Cândido Mariano da Silva Rondon, posteriormente conhecido como Marechal Rondon, à frente da Comissão de Linhas Telegráficas do Estado de Mato Grosso, deixou registrado os ataques que fazendeiros desfechavam contra os indígenas, como ocorria na bacia do rio Taboco. Em suas palavras: “[...] eivados da falsa noção de que o índio deve ser tratado e exterminado como uma fera contra o qual devem fazer convergir todas as suas armas de guerra, os fazendeiros ao invés de reconciliarem-se com os silvícolas trucidavam homens, mulheres e crianças e aprisionando os que não havia logrado fugir”.

Segundo Rondon, não contentes com os assassinatos, alguns fazendeiros “abriam os ventres de índias que se achavam em adiantado estado de gravidez”. Ações desta natureza são definidas como etnocídio e persistem, com outras roupagens, até o tempo presente. Por isso em Mato Grosso do Sul os indígenas são percebidos por muitos como não-humanos, chamados pejorativamente de “bugres”.

Dessa forma, no âmbito da constituição do Estado Brasileiro e da formação da sociedade nacional, foram registradas sucessivas tentativas de exploração, dominação e até extermínio contra os povos indígenas. À medida que se estabeleceram na região, fazendeiros incorporaram territórios indígenas ao seu patrimônio. Muitos conseguiram isso requerendo junto às autoridades estaduais, sem muitas dificuldades e por meio pouco ortodoxos, títulos de propriedade privada da terra. Muitas áreas atingiam um tamanho tal que era demarcada vagamente em função da particularidade geográfica de cada região: córregos, rios, morros etc. Embora tivessem logrado a titularidade de vastas extensões, frequentemente não tomaram posse imediata das terras, onde comunidades indígenas conseguiram permanecer, de maneira mansa e pacífica, por décadas sem grandes infortúnios.

À frente desses fazendeiros emergiu um grupo de proprietários de terra que se enriqueceu ao longo dos anos e, aproveitando-se da influência que tinham nos governos municipais, estadual e federal, ganhou poderes sobre pessoas e coisas. Mais ainda, promoveu todo tipo de violação dos direitos elementares dos povos indígenas. Constituiu-se, assim, uma elite ruralista com muita influência nos poderes constituídos na República, isto é, no próprio Estado Brasileiro. Seus feitos são enaltecidos por uma historiografia colonialista, geralmente financiada com dinheiro público, ligada à construção de uma história oficial e de uma identidade sul-mato-grossense, geralmente em oposição à de Mato Grosso, particularmente de Cuiabá.

Assim, no tempo presente observamos mais uma situação de conflitos entre ruralistas e comunidades Guarani, Kaiowá e Terena. O resultado disso foi mais um indígena assassinado durante a retomada de uma área oficialmente declarada como terra indígena, chamada Ñande Ru Marangatu, localizada no município de Antônio João, na fronteira com o Paraguai. Sobre o assunto, até o momento nenhuma autoridade esclareceu de onde veio o tiro que no dia 29 de agosto de 2015 ceifou a vida do Kaiowá Simeão Fernandes Vilhalba, 24 anos. A julgar pelo histórico do assassinato de indígenas no estado, como aconteceu com Nelson Franco (1952) e Marçal de Souza (1983), este será mais um caso em que os criminosos permanecerão impunes.

As autoridades máximas estaduais, com destaque para o governador do estado, em tese teriam a obrigação de contribuir positivamente para a elucidação dos fatos e repressão a todo tipo de violência armada contra povos originários. Trata-se de uma responsabilidade inerente ao cargo para o qual foram eleitos e em defesa do Estado Democrático de Direito, cujo conceito não se limita à defesa da propriedade privada da terra e da classe social à qual pertencem. Todavia, uma conduta desse tipo é incompatível com o protagonismo que certas autoridades tiveram no chamado Leilão da Resistência, ação planejada e executada por ruralistas para arrecadar fundos e financiar ações contra a retomada de terras indígenas, com a contratação de milícias armadas, tal qual noticiado pela imprensa desde 2013.

Por isso em Mato Grosso do Sul há uma situação peculiar da qual parte da população do estado não sente orgulho: quem não é fazendeiro, será tratado como boi bagual e, portanto, como não-humano ou animal selvagem, sobretudo os povos originários, comunidades tradicionais e segmentos de classes sociais em situação de vulnerabilidade social.



(*) Jorge Eremites de Oliveira é doutor em História (Arqueologia) pela PUCRS e docente da Universidade Federal de Pelotas e Paulo Marcos Esselin é doutor em História (História Ibero-Americana) pela PUCRS e docente da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.



"Posso ser leve como uma brisa ou forte como uma ventania,
Depende de quando e como você me vê passar."

Clarice Lispector